Cláudia Dias Baptista fez 70 anos em junho último, e seu sobrenome trai de imediato o
parentesco com os irmãos roqueiros Sérgio e Arnaldo, dos Mutantes, de quem é prima. Desde que se tornou monge budista – e a primeira mulher de ascendência não japonesa a assumir a presidência da Federação das Seitas Budistas do Brasil –, Monja Coen foi se distanciando de todos os rótulos que nos aprisionam, sejam as referências exclusivamente familiares, a aparência feminina ou a idade. A expectativa de sua chegada ao lobby do hotel é a de que seja a personificação da paz. Mas as expectativas são mesmo uma antessala da ilusão. O que ela traz consigo é algo muito mais próximo da alegria, um contentamento tranquilo que se expressa na atenção plena posta no interlocutor. Em seu novo livro, O sofrimento é opcional – Como o zen budismo pode ajudar a lidar com a depressão (BelaLetra, 2017), Coen Sensei conta parte da vida tumultuada que a levou a uma tentativa de suicídio e à busca pelo equilíbrio. De depressão entende, embora confesse não ser especialista. “Antes do século 19, e da psicanálise, os religiosos, os xamãs e os monges cumpriam o papel de auxiliar as pessoas”, diz. Nesta entrevista, conversamos sobre o nosso tempo.
O chamado “mal do século” é tema de seu novo livro, O sofrimento é opcional – Como o zen budismo pode ajudar a lidar com a depressão (BelaLetra, 2017). Qual a origem desse mal? O que o fez tão forte e presente na contemporaneidade?
Vivemos hoje sob forte pressão, cercados pela desesperança, bombardeados todo o tempo por notícias negativas. A imprensa não nos traz nada que não seja violência, guerra e destruição. Também vivemos em conflito internamente, tanto com aquilo que somos quanto com o mundo em que vivemos e, sem nos conhecermos, ficamos ainda mais perdidos. Na verdade, a depressão, ainda que em menor escala, sempre existiu, mesmo sob outros nomes. No romantismo, por exemplo, muitas vezes, assumia a forma da tuberculose, a doença do amor não correspondido. Os escravos também morriam de tristeza. E os índios, quando arrancados de seu contexto natural e obrigados ao trabalho. Se você tira do ser humano a perspectiva da consciência daquilo que ele é e o mantém em um estado semimorto, ele cai em depressão. É como entrar em um redemoinho.
A medicalização tem sido vista frequentemente como o caminho mais rápido para voltarmos à funcionalidade. Como a senhora vê essa opção?
Tenho um amigo que é médico de família e que deseja se tornar monge budista, e ele é absolutamente contra medicamentos, a não ser em casos extremos. Penso que está havendo uma banalização. Outro dia, conheci uma criança de 11 anos que estava sendo medicada com antidepressivos por causa de bullying. É difícil, claro, mas temos que aprender a superar as dificuldades. Se cada vez que eu tiver um desconforto ou uma dor, eu for medicada, a tendência é que eu perca a capacidade humana de superação. Se você tem insônia e toma remédios para dormir, logo você não poderá mais dormir sem eles e terá que consumir cada vez mais. Por isso necessitamos de bons médicos, de médicos éticos, que sejam capazes de discernir quando é realmente necessário medicar, porque há casos de depressão profunda e de síndrome do pânico, nas quais se justifica o uso, mas só durante o período de crise. Tomar remédios é parte da recuperação. Claro que há a depressão crônica, que é difícil de lidar, mas, de modo geral, há alternativas. Antes do século 19, antes da psicanálise, eram os religiosos, os xamãs e os monges que cumpriam o papel de auxiliar as pessoas com depressão. Buda tem uma coisa interessante sobre isso, que é sobre o conhecimento da mente humana. Só posso fazer funcionar bem aquilo que eu conheço, é preciso conhecer para usar, e isso diz respeito ao conhecimento de si mesmo, da sua mente, das suas limitações. Uma analogia que gosto muito é a de que existe um ícone em nossa tela de trabalho chamado sabedoria, que é a compreensão clara da realidade, e tudo que precisamos fazer é direcionar o nosso mouse para ele, colocar a nossa atenção no que é a sabedoria, sair da ignorância.
Em que consiste essa ignorância?
Muito do que nos leva ao sofrimento é a ignorância sobre a impermanência das coisas. As coisas mudam, nada permanece, tudo se transforma todo o tempo. Podemos direcionar a transformação, embora não possamos controlar nada. Em relação à depressão, é preciso saber que não precisamos estar sozinhos e medicalizados para atravessar essa dor. Podemos fazer essa travessia pedindo ajuda, estando juntos com os outros, buscando apoio, e com várias técnicas, não só com remédios.
A senhora falou sobre a imprensa e seu bombardeio de notícias negativas. A senhora é jornalista. Como vê o cenário mundial hoje e a pós-verdade que desafia os jornalistas?
Mas não é incrível? Não é impressionante isso? Na tradição budista, dizemos que devemos buscar dentro de nós mesmos a verdade, pois temos a capacidade de discernir o que é real e o que é falso. Todos nós temos essa capacidade. Sempre que vemos uma notícia, falando de política, por exemplo, o primeiro passo é pensar a quem ela interessa e por que está sendo divulgada naquele momento. É preciso ver além das aparências. Mas o que acontece é que nos acostumamos a olhar o mundo com superficialidade, só vemos as roupas que as pessoas vestem, se são gordas ou magras, qual a cor da pele... Somos incapazes de aprofundar a nossa visão sobre as coisas e as pessoas, de olhar com profundidade e enxergar a essência. Quando formos capazes de ultrapassar as aparências, aí sim, entraremos em contato com a realidade e não sentiremos ódio ou raiva de ninguém, nem mesmo daqueles que estão mentindo, porque, muitas vezes, a mentira é tudo que eles têm a oferecer naquele momento.
A máxima do “cada um dá aquilo que possui”.
Exatamente. Não é que não se vá punir os culpados, nada disso. Mas tentar compreender qual o contexto que formou aquele ser humano daquele jeito, que expectativas colocaram sobre ele, que causas e condições o formaram, para que ele se manifeste no mundo desta forma. E mesmo o castigo não será aplicado com ódio, com raiva, com esses sentimentos que são capazes de destruir comunidades, famílias, grupos, cidades inteiras.
Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE
Em seu livro, a senhora diz que o oposto da depressão não é a alegria. Mas a alegria tem sido considerada um imperativo, inclusive para o sucesso.
Sim. Conheço pessoas que, se chega alguém triste, saem imediatamente do local. Elas não podem sequer ficar perto de pessoas que estejam tristes, têm medo de se “contaminar” com a tristeza. Mas a verdade é que a tristeza faz parte da nossa vida e devemos estar preparados para lidar com ela, ela é tão natural quanto as fases do dia. Alguém que se diga permanentemente alegre soa mesmo duvidoso. A diferença é a seguinte: no budismo, encontramos um estado de contentamento com a existência que, mesmo se atravessamos dificuldades, dores ou sofrimentos, saberemos lidar com elas, atravessar esse oceano da existência, que é o nascimento, a doença, a velhice e a morte, em um barco seguro, que é o da sabedoria, da compreensão, da calma e da consciência, ao invés de se afogar.
Acaba-se estigmatizando quem corre à margem dessa alegria compulsória.
Sim, como se a tristeza fosse algo perigoso e mau, quando não é, e muitas vezes culpando quem está triste. No entanto, a tristeza é algo que, quando nos pega pelo pé, consegue nos puxar para baixo, que é a questão da depressão, e é mesmo complicado sair dela. Um amigo psiquiatra me disse, certa vez, que as pessoas que fazem meditação, e que já atravessaram uma depressão, costumam ficar mais atentas aos primeiros sintomas antes que ela se instale outra vez, e que eles são capazes de buscar coisas boas das quais possam se alimentar para resistir e não sucumbir. É um dos benefícios do autoconhecimento.
Podemos dizer que, de certo modo, foi a depressão que levou o Buda a alcançar a iluminação?
Tem alguma coisa sim. Quando eu me entristeço por algo que não é, isso pode me dar um impulso em busca daquilo que é, e esse foi realmente o caso do Buda. Ele era um homem muito rico, jovem, saudável, casado, pai de um filho, tinha tudo para ser feliz, mas ele se questionava sobre o sentido da vida, sobre as razões da dor e do sofrimento. E ele foi se entristecendo por isso, e nada mais o agradava. E ele só vai encontrar as respostas que busca na prática meditativa. No budismo se fala assim, que os seres celestiais não são capazes de acessar a sabedoria perfeita, porque quando nada falta, quando a vida é só alegria, fica mais difícil acessar a sabedoria, e ela é a maior riqueza que um ser humano pode ter. É muito importante nos questionarmos sobre quem somos e o que estamos fazendo nesse planeta. A vida não tem um só sentido, pode ter vários sentidos. E a depressão surge como um momento para repensar mais uma vez a existência, a morte, quem somos. Há um professor de yoga, Hermógenes, que era um homem maravilhoso – ele morreu com mais de 90 anos – e dizia que, no final de sua vida, adoraria criar uma nova religião, o desilusionismo, para que as pessoas, estudando, entendessem que a cada desilusão estarão mais próximas da verdade, o que seria motivo de grande alegria, não de tristeza
Penso que o modo como vivemos hoje vai na contramão da atenção plena. Estamos em todos os lugares virtualmente e, no entanto, nunca onde realmente estamos. E sempre projetados, graças ao apelo consumista, para o futuro, viagens que faremos, coisas que iremos comprar...
Sim. E isso tem a ver com a questão do pertencimento. É a ideia de que se tenho coisas de tal qualidade pertenço a determinado grupo. Nós usamos isso e somos usados por isso. E a origem é o medo de ser rejeitado, de ser posto no ostracismo, de não ser acolhido. Isso é muito doloroso para o ser humano, e a propaganda, que é algo maravilhoso, acaba nos levando a ficar reféns do consumismo. Eu preciso consumir para mostrar ao mundo que posso ser acolhido, respeitado, aceito, que tento condições de competir. Isso é um pequeno engodo, um pequeno erro, e devemos tomar cuidado com ele. Por isso que sempre falo sobre a necessidade de olhar as pessoas em profundidade. Certa vez fui num encontro, num desses resorts luxuosos, e a esposa de um grande empresário veio me dizer exatamente isso, como ela era obrigada a consumir continuamente para ser aceita nos círculos que frequentava, no qual consumir era quase uma obsessão. Eu a aconselhei a continuar a consumir então, mas a não ser vítima disso, e a levar sempre uma palavra nova aos seus círculos de amizade, um questionamento sobre o sentido da existência, sobre a morte, sobre o próprio consumismo. As amigas até poderiam achar meio chato no começo, mas aos poucos, certamente, acabariam por se interessar, porque essas são questões fundamentais para os seres humanos e se não lidamos com elas acabamos por mascarar aquilo que realmente importa. Teremos que tomar muitos remédios para preencher o vazio.
A senhora falou sobre o cuidado com a palavra. O que vemos, no entanto, é o contrário disso. Principalmente nas redes sociais.
Mas a tecnologia não é má. O que há de errado é a capacidade humana de lidar com ela. Estamos repetindo o modelo de uma educação discriminatória e opressiva nas redes sociais. Odiamos quem não é como desejamos ou quem é o que desejamos ser. Sinto que falta meio de campo, mediação. O que precisamos desenvolver é essa capacidade de mediação.
Como pacificar a mente sem cortar os vínculos com tudo aquilo que nos exige e nos cerca?
Há uma frase do Dalai Lama: “Não deixe que outras pessoas tirem a sua tranquilidade”, algo assim. Temos nossa paz interior, mas nos deixamos invadir pelo desequilíbrio dos outros. Tudo que devemos fazer é encontrar o nosso eixo e voltar a ele. Somos diferentes, e isso é bom, aquilo que nos provoca é o que nos leva ao crescimento, e nem sempre aquele que nos confronta é nosso inimigo. Muitas vezes, o outro simplesmente não tem a capacidade de compreensão daquilo que somos. Não se trata de pacificar a mente, porque ela é incessante e luminosa, ela está sempre saltando daqui para lá, e é linda e maravilhosa assim. O que realmente precisamos é nos conhecer e aceitar a impermanência de todas as coisas.
Como lidar com a morte, por exemplo?
A morte é natural e, no entanto, é um tabu. Todos morreremos. Somos finitos. Por que não viver então com plenitude e fazer o melhor, sabendo que está tudo interligado? Tudo aquilo que você fala, pensa e faz mexe na trama da vida, na sua e na de todos que você conhece. De que jeito você deseja mexer na vida das pessoas? Reclamamos demais, resmungamos demais... Se a vida é finita, por que não apreciar cada momento dela?
fonte correio da bahia